O grande escritor argentino Ernesto Sabato costumava descrever a leitura como uma “busca febril”. Jamais um hábito gelado ou ato desinteressado, mas sim algo que engaja de maneira intensa a criatura que, como você e eu, está em embarcada “en este complejo, contradictorio e inexplicable viaje hacia la muerte que es la vida de cualquiera.”
Antes Del Fin (1998) é o livro em que Sabato, pressentindo o fim da viagem vital, escreveu febrilmente como testemunho de sua vida e como sessões-de-recomendações às gerações mais jovens. Sempre que lhe paravam em uma rua, uma praça ou um metrô, para perguntar a Sabato – já que era o autor de livros celebrados como O Túnel e Sobre Heróis e Tumbas – quais os livros que deviam ser lidos, ele dizia sempre:
“Lean lo que les apasione, será lo único que los ayudará a soportar la existência.” (p. 17)
É este tipo de devoração febril e apaixonada dos livros, buscados como vias de acesso a algo que pode modificar a existência, que me entusiasma. E este entusiasmo pelos livros eu não posso evitar em mim que venha acompanhado pela a vontade de que isso se torne contagioso, produza epidemia (a colheita será de poetas e cantores, não de cadáveres mas de vida revitalizada!).
Nutro a humilde utopia de que mais gente enxergue no ler uma das mais importantes e deleitosas atividades da vida, e passe a ler (mais e melhor) não porque alguém ordenou, não porque a professora mandona mandou (empunhando palmatórias ou provas!), não pois alguma autoridade que aplica testes ou concursos exigiu… Ler como ato autêntico da vontade que escolhe esforçar-me por auto-transcender-se e aprimorar-se.
Gosto da descrição que Sabato faz do ler como atividade que engaja coração e mente, que põe alertas todos os sentidos, que estimula a inteligência sem resfriar o coração, que nos catalisa para que entremos em um estado de intensa procura (e de preferência também descoberta) de verdades difíceis e percepções raras:
“He dedicado muchas horas a la lectura y siempre há sido para mí uma búsqueda febril. Nunca he sido un lector de obras completas y no me he guiado por ninguna clase de sistematización. Por el contrario, en medio de cada una de mis crisis he cambiado de rumbo, pero siempre me comporté frente a las obras supremas como si me adentrara en un texto sagrado; como se en cada oportunidad se me revelaran los hitos de un viaje iniciático. Las cicatrices que han dejado en mi alma atestiguan que de algo de eso se ha tratado. Las lecturas me han acompañado haste el día de hoy, transformando mi vida gracias a esas verdades que sólo el gran arte puede atesorar.” (SABATO, Antes Del Fin – Buenos Aires: La Nación, 2002, p. 42)
O escritor sai transformado de sua escrita, o leitor sai transformado de sua leitura, e estes posições invertem-se com frequência: quem muito lê, acaba escrevendo, ainda que seja para comentar os livros que leu, e por aí já vai ensaiando os passos que pode seguir se decidir levar a sério o ofício de escritor… Esta transformação íntima, psíquica, anímica, afetiva, propiciada pelos livros, é também algo evocado por uma muito disseminada citação de Franz Kafka, em que ele clama para que o livro se transforme em um machado com o qual devemos destruir “o mar gelado” que levamos por dentro.
Sou um leitor que não costuma forçar a barra com livros que não está apreciando, lançando-lhes longe para preferir aqueles livros que nos apaixonam, que nos lançam àquele estado de exaltação subjetiva, comovendo-nos e assim transformando-nos não só no sentido da suportação da existência, mas do aprendizado cada vez mais ampliado dos caminhos para o bem viver e o bem morrer.
Como livreiro e blogueiro, tenho tentado pôr minha formação profissional em jornalismo e filosofia a serviço da difusão dos bons conteúdos e da disseminação do excelente vício da bibliofilia. Gosto do meme, exposto acima sem pudor, que convida a encher uma taça de vinho, sentar-se à poltrona, ligar a luminária e “tomar um porre de livros pois a ressaca vai ser de cultura!” O professor de filosofia em mim já vem querendo adicionar: faço-lhes bons votos de que a ressaca seja também de sabedoria!
Se for um vício, a bibliophilia me parece um dos mais benignos – e que sentido haveria em chamar de vício uma coisa boa? Vamos dar asas, portanto, às bibliophilias, mas com o salutar senso crítico bem vigilante. Ler muito não faz milagre: há quem encerre sua cabeça, como o avestruz na areia, num círculo estreito de um único livro, considerado como “sagrado”. É um crime contra todos os livros já escritos na história do mundo. Você achar que toda a verdade está em um único livro, pois ditado por Deus, Alá, Buda, Xangô ou sei lá quem, produz a hecatombe da diversidade estonteante que também faz tanta da graça inesgotável da leitura.
Ler é viajar ao coração pulsante das alteridades em profusão. É conhecer por dentro o processo linguístico de criação, de expressão, de formação, que moveram o escritor a parir este seu rebento-livro. Ler é ter acesso a um diálogo com os mortos, ainda que de mão-única: posso tentar refutar o Macbeth de Shakespeare, questionando se ele de fato pensa que esta vida não passa de “a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing…”, mas não haverá resposta senão o próprio eco infindo da obra, nunca totalmente passada enquanto nós, do presente, a ressuscitamos, dando-lhe novo alento.
Um perigo que enxergo na bibliophilia está quando, levada ao excesso, ela conduz ao logocentrismo, à logorréia, à verbosidade solipsista – é o perigo de ficar de nariz tão afundado nos livros, que você passa a delirar que o mundo é feito de palavra… O mundo, sabemos pela parte dele somos, que constituímos, é também carne, osso, sangue, vômito, guerra, opressão, resistência… E sempre há imenso saber e sabedoria que necessitamos ir buscar para além dos livros – ou seja, nas vivências.
Como filósofo, não consigo me desviar de ter em mira aquilo que estimula a caminhada de filósofos há milênios: a sophia, que certamente pode ser comunicada em uma miríade de formas, sendo o livro apenas um dos possíveis veículos da sabedoria. É preciso sempre insistir na oralidade filosofante de figuras seminais como Sócrates, Diógenes de Sínope e Sidarta Gautama – que fizeram da fala o barco de transporte de suas respectivas sabedorias. A escuta atenta da fala do outro é via magna de acesso àquele incremento de sabedoria que é objetivo da filosofia promover incessantemente. Sabato tem belíssimas palavras sobre o tema da sabedoria transmitida para além dos livros, em reflexões que somam-se de modo simbiótico com aquilo que disse Walter Benjamin sobre a função social do narrador:
“En las comunidades arcaicas, mientras el padre iba en busca de alimiento y las mujeres se dedicaban a la alfarería o al cuidado de los cultivos, los chiquitos, sentados sobre las rodillas de sus abuelos, eran educados en su sabiduría; no en el sentido que le otorga a esta palabra la civilización cientificista, sino aquella que nos ayuda a vivir y a morir; la sabiduría de esos consejeros, que en general eran analfabetos, pero, como um día me dijo el gran poeta Senghor, en Dakar: ‘La muerte de uno de esos ancianos es lo que para ustedes sería el incendio de una biblioteca de pensadores y poetas.'” (SABATO, Antes del Fin, Buenos Aires, La Nación, p. 18).
P.S. – Abaixo, procurei reunir num cyber-báu as leituras que marcaram minha travessia biblióphila pela vida neste ano de 2017. É um espécie de “diário” – que também atua como portal de entrada – onde registro a jornada pelos livros que atravessei do princípio ao fim. O que é sinal de que mantiveram minha atenção e meu interesse. Os abandonados pelo caminho, os que parei de ler no meio ou nas primeiras páginas, não figuram nesta lista. Eis alguns dos companheiros-de-papel (e de Kindle…) que me fizeram companhia e entusiasmaram a minha busca febril por uma viva vivível, linkados com os textos e artigos que pude tecer sobre alguns deles.
Eduardo Carli de Moraes / Goiânia, Jan. 2018
01. ANTONIO SKÁRMETA, A Insurreição (La Insurrección)Ed. Francisco Alves, 1983, coleção Latino-América
trad. Reinaldo Guarany
02. VIOLETA PARRA, Poesia (capa dura, 472 pgs)Belíssimo livro publicado pela Universidade de Valparaíso,
em parceria com a Fundación Violeta Parra – Chile, 2016
SAIBA MAIS: Arder até as cinzas, renascer como Fênix:
A potência da palavra povoada de V. Parra
03. JOSÉ MARTÍ, Vibra el aire y retumba (Poesia)
[SAIBA MAIS – Leia o poema Yugo y Estrella]
Buenos Aires: Editorial Losada, 1997; 232 pgs.
04. ALFREDO SIRKIS, Roleta ChilenaRio de Janeiro: Record, 1981.
05. MARCELO ALVES, Camus: Entre o Sim e o Não A Nietzsche
06. ANTONIO SKÁRMETA, O Dia Em Que A Poesia Derrotou um Ditador (Los Días Del Arcoíris) – Ed. Record, 2012
07. VERONICA STIGGER
Onde a Onça Bebe Água
08. ELIANE BRUM
A Vida Que Ninguém Vê
AS VIDAS QUE QUASE NINGUÉM VÊ: Como o jornalirismo de Eliane Brum visibiliza a diversidade humana e a unicidade dos destinos >>> http://wp.me/pNVMz-1xx
09. ANGELI, O Lixo da História
10. ELENI VARIKAS, A Escória do Mundo
Leia um trecho em que Varikas trata da poetisa Phillis Wheatley
11. FRANCISCO ORTEGA, Amizade e Estética da Existência em Foucault
12. BOB MARLEY – GUERREIRO RASTA
http://wp.me/pNVMz-3Ch
13. HANNAH ARENDT, Sobre a Revolução (Cia das Letras)
14. IAN MCWEAN, Enclausurado (Nutshell)
15. OTTO RANK, O Trauma Do Nascimento
16. GABRIEL TARDE, As Leis Sociais
17. MICHEL FOUCAULT, A Coragem da Verdade
Curso no Collège de France, 1984 (Ed. Martins Fontes)
18. MARILENA CHAUÍ, Introdução à História da Filosofia – Vol. 1: Dos pré-socráticos a Aristóteles
19. GABRIEL TARDE (1843 – 1904), A Opinião e As Massas
(Ed. Martins Fontes)
20. DIÓGENES, O CÍNICO
de Luis E. Navia
Ed. Odysseus
CLICK E SAIBA MAIS
21 .MACHADO DE ASSIS – Ressurreição
22. MACHADO DE ASSIS – Helena
23. VLADIMIR SAFATLE – Só Mais um Esforço
24. ANTÔNIO RISÉRIO – A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros
25. ROSANA SUAREZ – Nietzsche e a Linguagem
26. LÚCIA NAGIB – A Utopia no Cinema Brasileiro
27. JORGE AMADO – Jubiabá
28. MARGARET ATWOOD – O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale)
29. BERNARDO KUCINSKI – K. – Relato de uma Busca
30. ROGER BASTIDE – O Sonho, o Transe e a Loucura
31. BELL HOOKS – Ensinando a Transgredir
31. PAULO FREIRE – Cartas a Guiné-Bissau
32. ELIZABETH KOLBERT – A Sexta Extinção
33. HANS JONAS – Matéria, Espírito, Criação
34. HANS JONAS – O Conceito de Deus Após Auschwitz
35. BARBARA EHRENREICH – Dançando nas Ruas
36. KATE EVANS – Rosa Vermelha
37. STEPHEN GREENBLATT – A Virada
38. DORIAN ASTOR – Lou Andreas-Salomé
39. GEORGE ORWELL (1903 – 1959) – “O Que é Fascismo? E Outros Ensaios”
40. HEINE HEIN? POETA DOS CONTRÁRIOS – Heinrich Heine e André Vallias
41. MAURICIO RABUFFETTI – Mujica: A Revolução Tranquila
42. AUGUSTO BOAL – Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas
43. MARY WOLLSTONECRAFT – Reivindicação dos direitos das mulheres
44. ANDRÉ DAHMER – A Cabeça É A Ilha
E.C.M. – 3/1/18
Publicado em: 07/01/18
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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