O SILÊNCIO DAS ESTRELAS
As piores doenças, talvez, são aquelas não catalogadas pelos calhamaços de medicina, para as quais os psiquiatras ainda não encontraram nome… Aquele que sofre deste mal inominável não tem o consolo de partilhar com outros um infortúnio semelhante, liame de dor a unir os sofrentes… Há um certo conforto, como nos lembra o atormentado protagonista de Fight Club, em pertencer a uma certa panelinha, mesmo que seja a do alcóolatras anônimos ou dos que padecem de câncer nos testículos. Qualquer coisa é melhor que a solidão: mesmo chorar como um maricas nas tetas de Meat Loaf. Temos o mesmo vírus, o mesmo órgão sob ataque de invasores, o mesmo vício ou a mesma tara: ótimo! Há comunhão na desolação. Ou pode haver.
O sofrimento solitário é, decerto, o pior dos sofrimentos. Não poder nem mesmo rotulá-lo, domesticá-lo através do verbo, olhá-lo através do véu de uma palavra tranquilizadora! Pobres daqueles que não sabem batizar seu mal. Por vezes precisam fazer-se poetas, tateando pela selva de palavras em busca da expressão, tão difícil, de sua condição. Realizam, através de versos, um eletroencefalograma. A golpes de lirismo, auscultam as próprias entranhas. Sondam suas próprias profundezas com o escafandro desertificante da solitude. Lá fora, ao longe, revoam inacessíveis borboletas…
“Que nome dar ao meu mal?”, pergunta-se o poeta, perdido nos meandros de seu próprio coração, que gosta de crer labiríntico e complexo, um pouco por assombrar-se deveras com ele, um pouco pelo desejo de ser reconhecido como uma criatura que tem sua profundeza… “Não sou opaco!”, reclama ele contra aqueles cujo olhar parece estacar sobre a carne como que esta fora um muro. “Exijo ser tido como semi-translúcido!” Um mar, com a superfície revolvida pelas ondas, mas que esconde em suas funduras vastos vastos mundos… Ou assim se sonha este buscador de si mesmo, este contemplador de estrelas, este caçador de borboletas, este cosmonauta da galáxia da mente, este ente sofrente que não suporta o silêncio…
Por vezes não há meio senão a poesia para se quebrar o silêncio. Nada senão ela para tentar expressar o indizível. O imenso sol brilha sem dizer nada. Tampouco conhecem palavras as bilhões de estrelas que decoram o céu de nossa pequena galáxia. Existe tão silente o cosmo! Cosmo búdico. Não há estrela que se atormente; tampouco há olhar de poeta que não se inquiete com a impertubável quietude delas, serenas estrelas, em enorme contraste com as dilacerações humanas…
Elas irradiam luz e nada pedem. Nós vivemos no escuro e pedimos tudo. Difícil vê-las como irmãs. Ainda assim, já ouvi Sagan dizer que tudo o que há neste planetinha, inclusive nossos corpos, é feito de uma matéria que foi gerada no útero das estrelas e esparramada pelo espaço por explosões colossais de supernovas… Somos feitos de destroços de estrelas. Talvez sonhemos, no fundo, brilhar como elas, sem fomes ou escuros, sem angústia nem morte: pura existência em inocência, inconsciente de sua própria beleza, transbordante de riqueza e viço, que nada pede e tudo gera…
Que nome dar a esta doença, este calafrio crônico na espinha, que sentem aqueles que, como Pascal, contemplam o imenso cosmo e se apavoram com o silêncio eterno dos espaços infinitos? Pascal ao menos conseguia projetar sobre este acabrunhante silêncio a imagem de um Deus, sonhando que havia uma melodia por detrás do mutismo estelar, um poema escrito por detrás do aparente vazio entre os astros… Mas e aqueles que não podem? O que pensar do silêncio cósmico quando não se pode crer que há um deus cantarolando por detrás dele? Como saciar esta imensa curiosidade (qual o sentido de tudo? por que há algo ao invés de nada? por que nascer e por que morrer?) se nenhuma resposta fornece o firmamento àquele que o interroga? Será sina do olho lúcido viver, em seu lento caminhar debaixo dos mudos sóis, viver lacrimejando de dor e de espanto, de angústia e de maravilha?…
(Sto André, 27 de Dez de 2010)
Publicado em: 27/12/10
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Antes, algumas décadas passadas, queríamos ser independentes e saíamos de casa para morarmos sozinhos e ter o controle da própria vida. Hoje, algumas décadas depois, estamos enfiados em kitinetes entranhadas na cidade, pequenos cubículos de solidão, onde nos deparamos com essa assustadora falta de alguém ou de nós mesmos.
Escrevendo poemas que ninguém vai ler.
Como anda a carruagem, logo ficaremos mudos e pensativos. Seremos Homo-pensantes. Porém mudos.
Essa síndrome da solidão nos leva ao completo rompimento com o outro e com o meio vivente. Se continuarmos assim, não vejo outra solução senão voltarmos às origens: ao contato com as pessoas que abandonamos ou deixamos pelo caminho.
Reunirmo-nos deve ser a nova meta; assim voltaremos a contar estrelas. Juntos.
Parabéns pelo texto!
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
HUMBERTO FIRMO
Comentou em 17/08/11