RECEITA PARA COZINHAR O MUNDO
por Eduardo Carli de Moraes
O mais assustador de tudo é que a receita para cozinhar o mundo é de chocante simplicidade: basta que deixemos tudo como está. Que as maiorias silenciosas permaneçam com as bundas sentadas no sofá, imbecilizados pela televisão e confortavelmente entorpecidos pelo besteirol das ideologias dominantes, são ingredientes que bastam para a concretização da catástrofe.
Aqueles que querem contribuir para o fim da civilização ocidental e para o declínio brutal da biodiversidade sobre a face da terra só precisam fazer isto: permanecer de braços cruzados e permitir que os “entendidos” e endinheirados sigam dominando o cenário. Afinal, os plutocratas e as elites devem saber o que fazem, né? Well, not really! A máquina está montada para mover-se rumo à catástrofe climática e à mega-tragédia humanitária – e nossa única solução, como aponta claramente a autora de Sem Logo e Doutrina do Choque, é uma boa dose de rage against the machine.
Naomi Klein sempre teve o mérito de unir uma crítica mordaz do capitalismo neoliberal globalizado com um reconhecimento da importância dos movimentos sociais “altermundialistas” e grassroots. Em sua abordagem da crise que “muda tudo” – ou seja, o aquecimento global antropogênico, causado por alguns séculos de capitalismo industrial poluidor e ecocida – a brilhante escritora canadense também aposta suas fichas numa pressão que vem de baixo para impedir o pior. O básico de sua mensagem em seu novo livro – que traz como subtítulo “O Capitalismo Vs O Clima” – é resumível nisto: é impossível lutar contra o efeito estufa e a hecatombe ecológica sem atacar o capitalismo em sua raiz.
Pois o pior está a caminho: nosso sistema econômico dominante está em guerra contra a teia-da-vida terrestre, tecida por milhões e milhões de anos de evolução orgânica e que agora o homo sapiens ameaça destroçar em poucos séculos. Tudo o que precisamos fazer para que a catástrofe se concretize é nada: se deixarmos as mega-corporações prosseguirem tirando combustíveis fósseis do subsolo e colocando-os no mercado para serem consumidores; se os consumidores prosseguirem a cegamente contribuir com emissões grotescas de CO2 para a atmosfera; se as empresas poluidoras e devastadoras continuarem praticando suas devastações ambientais impunemente e praticando recorrentes mega-crimes, de oil spills ao assassinato de rios; se os governos, ajoelhados diante do poder financeiro, permitirem a perpetuação do vale-tudo do mercado, súditos fiéis do capitalismo-de-cassino e dos financiamentos empresariais de campanha… bem, aí então estamos fritos. We’re cooked. Literalmente.
Um dos dados mais aterradores que a consagrada jornalista investigativa Naomi Klein compartilha em This Changes Everything revela o cerne do nosso trágico problema: para que a Humanidade consiga evitar um aumento de 2ºC na temperatura do planeta – a meta fixada no último acordo internacional de Paris-2016 (COP 21) – existe uma certa quantidade x de carbono que pode ser lançado à atmosfera (eis aquilo que é conhecido como carbon budget); no entanto, o total das reservas comprovadas de combustíveis fósseis é cerca 5 vezes superior àquilo que podemos queimar com segurança sem causar uma apocalíptica catástrofe.
Autores como Bill McKibben, organizações como o IPCC (Intergovernamental Panel on Climate Change) e jornais como o The Guardian têm repetido incansavelmente este fato nos últimos anos: se quisermos limitar a quentura planetária ao incremento (por si só bastante inflamante!) de 2º C, podemos emitir apenas 565 bilhões de toneladas de carbono; porém, o total das reservas de petróleo, carvão e gás natural já comprovadas equivaleria à emissão de 2,795 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa. Faça a conta e chegarás à conclusão incontornável: 4/5 de todas as reservas precisam ficar exatamente onde estão: no chão. Lançar tudo à atmosfera equivale a um suicídio coletivo e um atentado contra a biosfera. (Saiba mais: relatório Unburnable Carbon)
A previsão é a de que, se queimarmos tudo o que temos pra queimar, vamos todos morrer cozinhados numa grande labareda de caos climático: haverá escassez de alimentos e grandes mortandades por fome e sede; inundações monstruosas de metrópoles costeiras e países (como Bangladesh) transformados em encarnações da mítica Atlântida; para não falar nas gigantescas crises de refugiados (“resolvidas” por inimagináveis crueldades fascistas). Sobre o tema, remeto às obras de George Monbiot, Isabelle Stengers, Michel Serres, Viveiros de Castro & Déborah Danowski, Alexandre Araújo Costa.
A conclusão que tiro a partir do que sei é: se quisermos sobreviver, temos que tomar a decisão (urgente) de deixar onde está o famoso “ouro negro” ao qual os plutocratas estão tão apegados. Nossa única chance de evitar um aquecimento global de proporções infernais é superar a lógica do lucro a curto prazo que é hoje tão hegemônica e migrar velozmente para uma economia planetária “verde”, sustentável, de teor ecosocialista e mais leal ao commons do que ao capital.
“THIS CHANGES EVERYTHING”
DOWNLOAD TORRENT: http://bit.ly/1LbPKQb
(BluRay, 720p, 1,09 gb; ainda sem legendas em português)
Os livros de Naomi Klein possuem não apenas uma assombrosa coerência interna e uma maravilhosa estrutura argumentativa: eles conectam-se uns aos outros como peças de um mesmo quebra-cabeça. A Doutrina do Choque começava por uma obra-prima de jornalismo investigativo sobre New Orleans e os impactos do Furacão Katrina. A intenção de Klein era mostrar em minúcias, a partir deste exemplo preciso, o quão cruel e desumana é a doutrina neoliberal de que “nas desgraças, há oportunidade$”: uma cidade devastada por uma catástrofe climática viu sua população mais pobre e despossuída tratada com um descaso e uma negligência que demonstrou a expícita falência do Estado diante do poderio das forças do “mercado”.
A lendária “mão invisível” de Adam Smith, esta versão da Providência Divina adorada por white anglo-saxan protest males, não deu o ar de sua graça para salvar os moradores de New Orleans, que foram abandonados à própria sorte pelo governo federal (mais preocupado com suas guerras-imperialistas-em-prol-de-petróleo do que com o cuidado com seus próprios cidadãos).
O livro seguinte de Klein – This Changes Everything – Capitalism vs the Climate – ataca a questão das mudanças climáticas permanecendo no mesmo âmbito de sua análise de obras precedentes: é o “fundamentalismo de mercado” que tem sabotado nossa resposta coletiva à crise, afirma Klein. A humanidade vê-se diante de uma “crise existencial” que a ataca num momento histórico onde, infelizmente, vivenciamos o desmonte generalizado da esfera pública e a disseminação epidêmica do individualismo consumista de massa.
O timing é o pior possível. Ainda assim, Klein oferece lampejos de esperança que estão conectados aos movimentos sociais que ela reúne sob o nome de Blockadia: ativisitas ambientais que bloqueiam o caminho dos poderes que desejam prosseguir no rumo desastroso do fossil fuel frenzy. Um emblema da força ascendente da Blockadia foi a mobilização, em 2014, da People’s Climate March (que tomou as ruas de centenas de cidades, globo afora, e reuniu mais de 400.000 manifestantes em New York).

TORONTO, ON – SEPTEMBER 13: Journalist Naomi Klein (L) and director Avi Lewis attend the “This Changes Everything” photo call during the 2015 Toronto International Film Festival at Ryerson Theatre on September 13, 2015 in Toronto, Canada. (Photo by Mike Windle/Getty Images)
Agora Naomi Klein e seu marido, o jornalista Avi Lewis, lançaram também um documentário que pretende repercutir ainda mais a relevante mensagem de This Changes Everything. Dirigido por Avi e narrado por Naomi, o filme viaja o mundo revelando as frentes-de-batalha da geopolítica contemporânea, revelando várias facetas de um planeta devastado. Revela também a resistência em ascendência que promete pôr um freio aos capitalismos desenfreados que estão nos empurrando ao estado de emergência de um globo em incêndio.
Nos oil sands de Alberta, Canadá, o filme revela um mega-empreendimento de extração de petróleo das areias betuminosas, um dos projetos industriais mais destrutivos (e lucrativos) da Terra, contestado pela insurgência das First Nations e de organizações como o Idle No More.
Em Nova York, após a passagem do furacão Sandy, vemos a auto-proclamada “civilização avançada” revelando-se em toda a sua fragilidade diante do poderio das tempestades e ventanias. Wall Street joga com o mundo como se tudo não passasse de um grande cassino, enquanto multidões engolem o fascismo populista em versão hard (Donald Trump) ou soft (Hilary Clinton) naquele país onde, segundo a cáustica ironia de Nicanor Parra, “a liberdade é uma estátua”.
Na China, presenciamos recorrentes notícias de uma situação de calamidade pública com a poluição atmosférica extrema, que obriga os chineses, nos grandes centros urbanos, a usarem máscaras de proteção contra a smog. Na Índia, testemunhamos milhares de suicídios decorrentes de dívidas contraídas por pessoas “sequestradas pelo Sistema Monsanto” e a eclosão de guerrilhas camponesas (como os maoístas, cuja história foi tão bem contada por Arundhati Roy) que lutam contra o ecocídio militarizado. Na Alemanha, uma luz de esperança brilha através do exemplo de uma transição veloz e bem-sucedida para fontes de energia renováveis (30% da eletricidade do país já provêm de fontes limpas), mostrando que o caminho para a solar e a eólica pode ser trilhado já. Divest from fossil fuels!!!

Pedestrians wear pollution masks as they cross an overhead bridge over a busy highway in Beijing, China. Photograph: Ng Han Guan/AP
O contexto brasileiro não aparece no filme de Lewis e Klein, mas podemos enquadrar o “drama do pré-sal” nesta problemática constelação e perguntar: a descoberta das vastas reservas de petróleo submarino, no Brasil, é uma dádiva ou uma maldição? Devemos celebrar o fato de possuirmos tantas “riquezas naturais” em nosso território, ou serão profundamente lamentáveis as consequências disso para a nossa estabilidade política e convivência cívica? Sobre o tema, cito e referendo a opinião de Bruno Torturra (Facebook, 25/02/2016):
Sabe a quem o pré-sal pertence? Ao subsolo.
Sempre sou ridicularizado pela esquerda por dizer isso. Mas repito hoje. O pré-sal nunca foi um bilhete premiado como afirmou o então presidente Lula. É, desde que foi encontrado, uma maldição.
Primeiro, uma maldição para nossa estabilidade política. Uma reserva de petróleo dessa magnitude, encontrada em país de vocação extrativista e colonial, é claramente uma presa saborosa demais para agentes econômicos de todo tipo, para a ganância multinacional, para a corrupção local e operadores eleitorais deixarem em paz. Em um país como o nosso, claro que seria veneno para a saúde institucional. Taí a realidade que não me deixa mentir.
Segundo, uma maldição para nosso modelo de desenvolvimento. Exaltar e associar a exploração de combustíveis fósseis como a grande solução para a educação nacional? Bela lição às crianças que vão viver no perigoso século das mudanças climáticas. Bela estratégia para um país que, antes de encontrar a reserva, era referência no desenvolvimento de biocombustíveis. E enquanto Lula e Dilma posavam rindo com as mãos sujas de óleo sob aplausos da esquerda ufanista, o mundo começava a entender que as potências energéticas do futuro imediato seriam criadoras de novas tecnologias para fontes limpas.
Terceira, e mais grave, maldição ambiental. Vamos explicar de novo: a atmosfera não dá mais conta. A humanidade, não apenas o Brasil, deveria ter lamentado que encontramos tanto óleo. Lamentado que a conta é feita em dólar, não em toneladas de carbono. Mas… recuperamos o slogan dos tempos de Monteiro Lobato, aceitamos a metáfora de Lula, de que o “bilhete premiado é nosso!”.
Bem… A Chevron, José Serra e desde ontem a própria Dilma discordam. E a esquerda sonâmbula toma um susto. E já começa a racionalizar, dizer que Dilma está refém, “golpe! golpe! Brasileiros, às timelines!” Até porque vai ser bem complicado ir para as ruas exigir todo aquele arame para a educação. É que junto com o fim da exclusividade da Petrobrás, ontem aprovamos o projeto anti-terrorismo que pode enquadrar manifestantes mais assertivos. Uma cortesia do Planalto.
Eu sigo em cima do meu caixote na praça dizendo: o petróleo não é nosso. Sabe onde a natureza o escondeu? Abaixo da camada de sal na crosta terrestre. Esse bilhete não foi “encontrado”. Será saqueado de um cofre geológico. E agora, como era de se esperar, também do caixa da educação. (BRUNO TORTURRA)
Não vejo motivos para otimismo: no Brasil, as mobilizações em prol da causa ambiental-ecológica são pífios, quase nulos, e mesmo o pior crime corporativo da história do país não gerou nem sequer uma mísera marcha ou manifestação significativa contra Samarco-Vale-BHP.
Também beira o inacreditável que um livro de tamanha importância planetária quanto a nova obra-prima de Naomi Klein ainda não tenha sido traduzido e lançado no mercado brasileiro, perpetuando o estado de desinformação e alienação em que nos encontramos sobre as questões mais prementes de nosso tempo. A temática das mudanças climáticas aparece na mídia muito mal e porcamente, quando aparece. A loucura do deixe-tudo-como-está é uma doença muito disseminada entre nós, assim como a insanidade suplementar da fé na tecnocracia e nos gestores empresariais.
Diante desse quadro lastimável, é preciso afirmar e re-afirmar a importância do trabalho de figuras como Naomi Klein, cuja obra ainda é subestimada e sub-estudada entre nós. This Changes Everything, tanto o livro quanto o filme, são guias essenciais não só para a compreensão do nosso presente, são cruciais para a criação de um futuro vivível: a tarefa é articular não somente uma proposta de políticas alternativa mas também uma outra visão-de-mundo que rivalize contra aquela que está no cerne da crise ecológica.
Precisamos com urgência da disseminação de uma visão-de-mundo alternativa, como diz Klein, baseada em “interdependência mais do que em hiperindividualismo, reciprocidade mais do que dominância, cooperação mais do que hierarquia. É o que precisamos não somente para criar um contexto político capaz de reduzir dramaticamente as emissões, mas também para nos auxiliar a lidar com os desastres que não podemos mais evitar. Pois no quente e tempestuoso futuro que já tornamos inevitável por nossas emissões do passado, uma inquebrantável crença nos direitos igualitários de todos os povos e uma profunda compaixão serão os únicos valores separando a civilização do barbarismo.” (KLEIN, This Changes Everything)
BAIXAR O DOCUMENTÁRIO COMPLETO
Leia trechos do livro – Post 1 – Post 2 – Post 3
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[…] à catástrofe ecológica e às mudanças climáticas antropogênicas – fenômeno que Naomi Klein propôs batizar de Blockadia e que analisa em minúcias em This Changes Everything, filme e documentário. O “emblema” da “nova era” […]
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