“Ele conhece a liberdade sem olhar no dicionário”, canta Russo Passapusso na poderosa canção “Sulamericano”, referindo-se ao “Revolucionário Guevara”.
Livres e soltos, os músicos do Baiana System transformam este 3º álbum da banda em uma promessa cumprida: O Futuro Não Demora. Ouvir este disco bombando nos alto-falantes é ter certeza de que o futuro já chegou. Agora cabe a nós sermos plenamente contemporâneos dele.
Dando sequência à obra-prima Duas Cidades, sem demora o grupo botou na praça outro álbum visionário e profético. Uma estética que aprendeu com Gil e a Tropicália a realizar uma arte futurística e futurível. O Futuro Não Demora é a prova viva de que a fervilhância da cultura brasileira – em especial na época com Gil e Juca à frente do MinC, bombando o programa Cultura Viva – não corre o risco de ser apagada, apesar de pilantras e calhordas a fazer merda com políticas públicas de cultura dentro dos aparelhos de Estado. Pois a cultura é do povo, e não do Estado; e quando o Estado busca sucateá-la ou silenciá-la, ela se alça como Fênix. E grita rompendo os cálices.
Pois o futuro chegou, e a soundtrack deste future que entre nós já vem desembarcando com seu peso de mamute e sua foxy esperteza é o BaianaSystem quem propõe através de seu agitado bonde do groove. Botando nas ruas e nas redes o seu som hipnótico, o grupo vem fazendo história nos festivais pelo Brasil com um espetáculo ao vivo impressionante.
Um show do Baiana é uma vivência incrível: é tanto um desafio cognitivo quanto uma oportunidade de experiência coletiva extática, ambas em doses cavalares. Quando estiveram por aqui, no último Bananada (2018), parecia que Goiânia inteira estremecia com um abalo sísmico com o som dos caras. O show era uma aparição telúrica que atingia altos índices na Escala Richter. Parecia que estavam tentando passar como terremoto sônico sobre a apatia e o desengajamento de toda uma geração. Terapia de choque para exorcizar a doentia Sociedade do Lucro.
Por mais desconectados que fôssemos antes, por mais individualistas e fechados que possamos ser para lá dos muros do festival, naquele aqui-e-agora extraordinário nós transcendemos nossas barreiras, caminhamos no sentido de virar uma coisa só, uma centopéia humana, um organismo coletivo. Goste-se ou não de bandas como o Baiana System, os Los Hermanos, a Legião Urbana, é inegável que elas mobilizam uma base de fãs que consegue fazer dos shows autênticas e altissonantes experiências místicas coletivas.
No Baiana no Bananada, foi assim: de repente, estávamos todos acesos, ligados, conexos. E assim o BaianaSystem revela-se como uma engenhosa maquinaria de conectividade. Um mega-corpo, um soundsystem de muitas cabeças, como uma Medusa ciborgue de cérebro plugado no mar de informação da Web.
Uma banda que se apropria da música como meio para fins que transcender a arte, pois adentram o reino da política, da briga por poder, da tentativa aguerrida de valer por parte daqueles tão desvalidos e tão desvalorizados pelos poderosos da vez (que tem uma tendência forte a serem escrotos e agirem como canalhas desumanos, como provam dúzias de exemplos, de Duque de Caxias a Bolsonaro, de Genghis Khan e Átila a Hitler e Pol Pot).
Convocando a força de suas raízes e dos orixás de Feira de Santana, o vocalista do Baiana System está soletrando cada vez melhor a liberdade. Põe à sua poesia, tão bem revelada pelo álbum solo Paraíso da Miragem, para nos levar pra voar. Salte do avião, você chegará vivo no chão. O paraquedas é por conta deles, e é de boa: salte neste abismo, abra-se à esta folia, escute esta sabedoria. O Brasil que deu certo é este, que pulsa diversidade e que ensina ao mundo o valor da água e da floresta, o valor da estima mútua e do respeito pela interdependência e pelas conexões.
Abra-se ao futuro que vira presente. Pois livros, paraquedas e mentes só funcionam bem quando abertos. E estar de portas abertas pro ganjaço sensorial do Baiana System é salutar para nossa cultura. Como foram também, em tempos de antanho, o Planet Hemp, a Legião Urbana, Os Mutantes…
MCs libertos dos cárceres dos dicionários, conectados visceralmente com a gíria das ruas, afiados no rap dos guetos, os caras do sistema baiano de subversão sônica encantam também pelo trato com a palavra. Os ritmados da fala nas ruas e florestas do pluridiverso Brasil pulsam no som do Baiana System. Nesta obra magna da Novíssima MPB, a figura do artista inconformado e inquieto, sempre mutante e criativo, segue “traçando vários planos para contra-atacar.”
O território do drama é aquele continente fraturado pelas injustiças de classe e pelas dominações brutais de elites do atraso sobre massas pisoteadas, aquele continente tão bem descrito por Eduardo Galeano e Gabo Márquez:
Descrita pela revista Rolling Stone Brasil como “mais atual do que nunca” e “banda brasileira mais relevante hoje”, a BaianaSystem “se reconecta à música brasileira e prepara o contra-ataque”. Uma enxurrada de participações especiais ajuda o discaço O Futuro Não Demora a zarpar num navio pesadão e cheio de ânimo: tem B Negão, tem Curumin, tem Antonio Carlos e Jocafi.
Tem até Manu Chao, cujo álbum Clandestino segue ecoando, anos e anos a fio, como o clássico da world music que já se tornou, sementeira que segue dando muitos frutos (como também o provam Anita Tijoux, do Chile, e Rebbeca Lane, da Guatemala).
Russo Passapusso tem antenas culturais tão bem fincadas em nossa fértil lama cultural multidiversa que não é absurdo equipará-lo, em elevação estética e visão artística, a figuras como Chico Science, Manu Chao, David Byrne ou Tom Zé.
Manifesto multifacetado de um “Terceiro Mundo” cansado de ser subalternizado, e que ergue sua cabeça com orgulho para mandar uma mensagem que se ouça planeta afora, o BaianaSystem participa de um devir-global do som contemporâneo brazuca, processo de que participam também, cada vez mais intensamente, os Boogarins.
O significado histórico de O Futuro Não Demora ainda não é claro, para nós que somos contemporâneos de seu desembarque por aqui. Mas é lícito supor que, junto com o lançamento do filme Marighella de Wagner Moura, esta será a obra-de-arte mais impactante deste início conturbado e violento da desgovernança Bozonazista. O Carnaval de Salvador terá muito a nos dizer, neste 2019, sobre a potência da cultura subversiva e transformadora através da ação – emblema e enigma – que será o Bloco Baianasystem pelas ruas de um país convulsionado.
Iluministas conectados à internet, cientes de participarem de uma teia de colaboração, os MCs da Bahia globalizável hoje mostram ao mundo um pouco daquilo que encantou tanta gente pelo globo nas figuras de Glauber Rocha, de Gilberto Gil ou de Jorge Amado… Esta “terra de contrastes” que, segundo Bastide, é o Brasil, costume ser fértil na produção de gênios assim.
Glauber, Gil, Amado, dão sequência à genialidade de Lima Barreto, de Assis Valente, de Castro Alves, de Gregório de Matos. Baiana System vem para se integrar nesta louvável tradição, onde a intimidade com a cultura popular não impede os ousados vôos de vanguarda. Onde soam fortes e sedutores os batuques e os tambores telúricos da Bahia-Roma-Negra.
Eis um álbum classudo, groovado, bomba percussiva de ritmado delicioso, que resiste bem a repetidas escutas, prometendo pôr pra ferver a subversão criativa e botando até o saci pererê pra pular. Mesmo que seja dançando duma perna só.
BaianaSystem – “O FUTURO NÃO DEMORA” (2019).
Ouça na íntegra: https://bit.ly/2BCUsVS.
Faça o download: https://bit.ly/2EdXxx9.
Leituras recomendadas:
[1] O Globo – BaianaSystem é um dos maiores acontecimentos da música brasileira recente. Banda baiana cria um mundo que rima mágico e trágico em ‘O futuro não demora’: https://glo.bo/2T1dgb6
[2] ‘Você tem poder para mudar o mundo’, defende BaianaSystem em terceiro disco:https://oglobo.globo.com/cultura/musica/voce-tem-poder-para-mudar-mundo-defende-baianasystem-em-terceiro-disco-23448359
[3] Revista NOIZE – Entrevista | O batismo de água e de fogo do BaianaSystem em “O Futuro Não Demora”: https://bit.ly/2DNdVUb.
[4] Red Bull – Em seu terceiro álbum de estúdio, a banda nos conduz por histórias e destinos da Bahia; leia com exclusividade como foi o processo criativo de cada uma das 13 faixas do disco:https://win.gs/2GwvQlz.
[5] Tenho Mais Discos Que Amigos: BaianaSystem vai da “Água” ao “Fogo” em seu terceiro disco de estúdio; ouça. Grupo traz chuva de participações no recém-lançado “O Futuro Não Demora”: http://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2019/02/15/baianasystem-terceiro-disco/
[6] Bahia.ba: Grooves e drones: CD do BaianaSystem tem ijexá hi-tech e viagem ao ‘centro da Terra’: http://bahia.ba/entretenimento/grooves-graves-e-drones-cd-do-baianasystem-tem-ijexa-hi-tech-e-viagem-ao-centro-da-terra/
[7] Antônio Risério: Pela pata se conhece o leão
[8] Mídia Ninja: Caetano Veloso entrevista Russo Passapusso
[9] A Tarde / Salvador: Navegar é Preciso
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Acompanhe: A Casa de Vidro (Livraria e Produtora Cultural – www.acasadevidro.com – 1ª Av., Goiânia/GO).
Publicado em: 18/02/19
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
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